sexta-feira, 9 de julho de 2010

30 de Maio, 1938

Noite passada praticamente não fui capaz de dormir. Me lembro de ter passado por algo semelhante, mas não com tamanha intensidade. A expectativa despertou tristeza, felicidade e pânico.
Quando finalmente a fraca claridade do amanhecer percorreu por uma estreita fenda em minha janela, levantei totalmente disposto, embora sentisse um cansaço mental.
Abri a janela do quarto e para surpresa o sol não aparecera, dando lugar a um céu em tom cinza fosco e uma neblina densa sobre a cidade, praticamente impossível de vislumbrar algo muito longe. Por um momento de profundo pesar, pensei que talvez a mudança de tempo poderia fazer com que o meu anjo simplesmente desiste do nosso encontro. Nesse momento sorri diante de minha própria inocência. Aquilo não era um encontro... Era?
Tentei encontrar a melhor vestimenta possível. Não queria ficar inseguro a seu lado, embora soubesse que seria exatamente essa a minha reação
O tempo estava frio, então vesti uma camisa branca e joguei sobre os ombros um velho sobretudo preto com abotoaduras douradas. Pensei em usar um chapéu, mas era algo um tanto ultrapassado, mesmo nos dias de hoje.
Imediatamente sai pela rua, ainda deserta. O frio com certeza havia desmotivado um grande número de pessoas a sair de casa tão cedo.
Talvez por meu estado de espírito ou porque o dia de fato estava daquele jeito, mas nunca havia percebido como uma manhã nublada poderia ser agradável para caminhar.
Cheguei mais rápido que o habitual, e, para meu desgosto ela não estava ali. Senti uma onda de desespero tomar conta de todo o meu corpo. Tive certa dificuldade em conter um súbito desejo de chorar. E não ria de mim por isso, Guilherme, porque o conhecendo há tanto tempo, tenho certeza que essa está sendo sua reação.
Fiquei parado, temendo que ela não pudesse me ver por entre as sombras das árvores, e então, após um período em que tive a sensação de uma eternidade, ela finalmente surgiu.
Senti uma agonizante reviravolta no estômago e minhas mãos pareceram formigar. Fiquei por um momento desesperado à medida que a vi se aproximando, sua bela silhueta recortada por entre o horizonte ainda escuro.
Pela primeira vez em todo esse tempo a percebi diferente, e ainda mais linda. Substituira o habitual vestido azul por um longo, preto desbotado e sem nenhum decote, que lhe caía de maneira ajustada pelo corpo. Uma espécie de xale na mesma tonalidade lhe cobria os ombros, ocultando parte de seus cabelos. Dessa vez o cigarro já estava aceso em sua mão.
À pouca distância me lançou o mesmo sorriso espontâneo. Qualquer um que tivesse visto aquela cena acreditaria que éramos conhecidos de longa data. Em um movimento rápido estendi a mão, e dessa vez meu rosto expressava interesse.“- Como vai senhorita? ...
“- Victoire Louvain. E não precisa me chamar de senhorita, apenas Vic.” Ela sorriu novamente. “Me diga, o que o traz aqui?”
Fiquei meio atordoado com a pergunta. Era óbvia a respsota. “-Você havia me chamado para caminhar... Não se lembra?”
Fiquei assustado com a risada seguinte.
“- Senhor Andrew, pergunto o motivo de você estar nessa cidade. O que o fez vir morar aqui?”
Senti vergonha da minha reação. Isso sim, era de fato tão óbvio. Balancei a cabeça tentado pensar em algo coerente.
“-Claro... Claro. Eu trabalho para o Senhor de S... Nos conhecemos há alguns anos enquanto estava fazendo uma visita a negócios em minha cidade. Ele me fez, à época, uma proposta realmente tentadora. Então decidi vir tentar a vida por aqui.”
Ela acentiu, começando a caminhar lentamente, a acompanhei, tentando me concentrar em tudo, não queria cometer nenhum deslize novamente.
“- Interessante...” Foi apenas o que ela respondeu. Pareceu devanear por algum tempo, e, com medo que o assunto morresse, perguntei.
“- E você? É nativa dessa região?”
“- Sim.”
“-Gosta daqui?”
“-Detesto.”
Fiquei perplexo. De fato não era um dos melhores lugares para se viver, mas ainda assim era um lugar acolhedor e calmo.
“- E... Sem querer ser deselegante, mas o que a faz odiar a cidade?”
“-As pessoas são deploráveis. Odeio absolutamente todos.”
Falava com um tom calmo e confiante.
Quando finalmente percebi, estávamos um pouco afastados da rua principal, em um lugar que ainda não sabia da existência, provavelmente era aqui o lugar em que Victoire sempre vinha assim que sumia de meu campo de visão.
Se forças divinas existem, elas estavam presentes naquele lugar. Era uma espécie de praça, ou, em outras palavras, um pedaço do Éden. Parte do bosque qua ladeava a extremidade da parte central da cidade havia sido aproveitada para proporcionar aquele lugar. Centenárias árvores sombreavam o chão gramado. Uma trilha estreita seguia por dentro do muro verde que as folhas se uniam para protege. Haviam dispostos pela local velhos bancos de aço.
“-É lindo, não?” Ela me olhava interessada.
“-Muito.”
“-A primeira vez que vim aqui tive a mesma sensação. Éramos felizes naquele tempo.”
Antes que pudesse pensar em algo, me indicou um banco, onde fomos nos sentar.
A conversa fluiu agradavelmente. Ela é muito inteligente. De certa forma não consegui descobrir muitas coisas a seu respeito. Ela me bombardeou com toda a sorte de perguntas e fiquei feliz em perceber que se interessava por tudo o que eu dizia.
Fiquei um pouco intrigado, hora ela me chamava pelo nome, hora insistia em acrescentar à frase o vocativo Senhor, isso me deixava um pouco confuso.
Após um tempo, que para mim durou muito pouco, ela disse que precisava ir embora, e, antes que pudesse protestar, já estava à meio caminho, atravessando o gramado, indo em direção a uma pequena rua tortuosa que levaria a algum lugar na extremidade oeste da cidade.
Mais uma vez esperei que se virasse, mas não aconteceu.
“-Nos vemos amanhã, Andrew.”
E a frase não tinha um som de pergunta.
Estou verdadeiramente feliz Guilherme. A maneira como ela me olha, como demonstrou estar interessada por mim... Meu Deus! Sei que estou sendo exagerado, mas sinto que poderia morrer hoje de felicidade.
Voltarei a escrever amanhã. Sinto que vou explodir cada vez que penso nela. Você será meu confidente.
Abraço meu amigo!

30 de Maio, 1938

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